Trabalho I - Jurisprudência é fonte do Direito? | + Recurso Extraordinário



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             Qual é a nascente do rio?

 A resposta do questionamento se a jurisprudência é ou não fonte do direito depende da perspectiva do que é entendido como direito. Em suma, torna-se necessário destacar o que se entende como fonte, pois há algumas teorias que o considera apenas com valor normativo. Tal vocábulo possui o sentido de origem, ou até mesmo, de modo análogo, é entendido como nascente de um rio, que no texto presente, tal “rio” é o direito cujas nascentes propiciam a sua existência. Sendo assim, existem várias teorias que o indica com sua respectiva fonte.

Diante disso, vale ressaltar que, a teoria tradicional considera apenas as normas jurídicas, isto é, regras que são obrigatórias, reconhecidas pelo Estado; ou seja, gerais por serem aplicadas a todas as pessoas e abstratas por se referir a fato-tipo – quando uma mesma norma pode ser aplicada a todos os fatos que se enquadrarem no conceito.

Neste contexto, a lei é considerada fonte primordial e os costumes como secundária, uma vez que apenas as normas legisladas e consetudinárias correspondem a essas características. Esta teoria, portanto, não considera a jurisprudência como fonte formal, e sim, como conjunto de decisões judiciais, cuja função consiste apenas em interpretar normas jurídicas, uma vez que não cria regras que demandam por obrigatoriedade [COSTA, 2001, pp.29; 113; 111; 116-117].

Neste sentido, a jurisprudência, quando relacionada com o conceito de fonte, possui o sentido estrito, compreendido, pois, como decisões jurídicas convergentes, em que julga repetidas vezes a mesma matéria fixando; assim, uma linha interpretativa, a qual tem o potencial de influenciar o direito. Torna-se possível entender o papel jurisprudencial, quando ela estabiliza as relações sociais mediante o estabelecimento de linhas de decisões.

Sendo assim, quando a ideia tradicional sobre o direito é superada, torna-se possível abordar, de fato, o tema sobre fontes do direito. Desta maneira, é ampliada a discussão dos papéis das leis que além de criar obrigações também estabelecem certa garantia de justiça social; da jurisprudência, pois se pode considerar que o juiz define obrigações a cidadãos a casos concretos; da doutrina, uma vez que ela orienta ação legislativa e judiciária; dos contratos por possuírem capacidade de criação de normas específicas entre os contratantes; dos costumes que estabelecem regras gerais. É válido afirmar, sobremaneira, que todos estes possuem capacidade de influenciar o direito, tanto que são importantes na formação do direito e na atividade jurídica prática [COSTA, 2001, pp. 111;113;116-118].

Sobretudo, é necessário enfatizar que o papel dos juízes estabelece normas jurídicas para regular as situações que lhe são submetidas, isto é, eles apresentam uma regra específica para o caso em julgamento, no qual são vinculadas todas as normas do direito positivo. Tercio Sampaio Ferraz Junior, inclusive, aborda sobre a intenção do jurista o qual “não é apenas conhecer, mas conhecer tendo em vista as condições de decidibilidade de conflitos com base na norma enquanto diretivo para o comportamento”¹. Neste sentido, segundo Kelsen, a norma individual só é criada através da decisão judicial, a qual é entendida como continuação do processo de criação jurídica e também possui função declarativa². Todavia, tal capacidade criativa é limitada, uma vez que o juiz não pode criar normas gerais e nem abstratas.

Cabe ressaltar; entretanto, que, embora não haja obrigação de julgar de acordo com precedentes, comumente, os juízes passam a seguir a mesma linha de jurisprudência fixada em um tribunal a eles vinculado. Tercio Sampaio, sobremaneira, apresenta “a chamada jurisprudência pacífica dos tribunais, que não obriga, mas de fato acaba por prevalecer”³. Inclusive, em países de Common Law, a jurisprudência é facilmente considerada como fonte, visto que os casos são obrigados a serem julgados a partir de precedentes [COSTA, 2001, pp.111;113;118].

Sendo assim, a fim de compreender se a jurisprudência é ou não fonte do direito positivo brasileiro, torna-se relevante considerar o poder jurisdicional que é exercido pelos membros do Poder Judiciário, como juízes, desembargadores e ministros dos tribunais superiores. Tais autoridades podem criar normas jurisdicionais que decidem conflitos ou esclarecem o significado e a validade de outras normas jurídicas.

Para veicularem tais normas de modo válido, devem utilizar instrumentos próprios, como sentenças e acórdãos⁴. Desta maneira, para melhor analisarmos a questão, vale destacar a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) e, assim, poderemos analisar, sobretudo, a possibilidade do caráter criativo da atividade judicial ou do judiciário seguir as linhas jurisprudenciais estabelecidas. Para tal fim,convém isolarmos um Recurso Extraodinário (RE), para melhor abordagem sobre o tema. Deste modo, consideremos, pois, o (RE) 349703, que discutia sobre a prisão civil de depositário infiel; caso que, inclusive, apresenta controvérsias⁵.

No Recurso Extraordinário, o Banco Itaú questionava a decisão proferida no julgamento da Apelação Cível nº  598.156.263 (fls.178-192) pela 13º Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (TJRS), o qual entendeu que o contrato de alienação fiduciária em garantia é insuscetível de ser equiparado ao contrato de depósito de bem alheio para efeito de prisão civil⁶. O Banco Itaú requereu a conversão do pedido de busca e apreensão em ação de depósito, com base no art. 4º do Decreto-Lei nº 911/69⁷ e com fundamentos nas alíneas “a” e “b” do inciso III do art. 102 da Constituição Federal.

De fato, a prisão civil do depositário infiel é prevista no artigo 5º, inciso LXVII, da Constituição Federal. Entretanto, é vedada pelo artigo 11º do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e no artigo 7º do Pacto de São José da Costa Rica, do qual o Brasil é signatário⁸ . Portando, tendo em vista a relevância que a matéria assumiu na jurisprudência do STF, com a salvaguarda dos direitos fundamentais assegurados na Constituição de 1988 e dos direitos humanos protegidos pelos tratados internacionais dos quais o Brasil é sujeito, o ministro Gilmar Mendes, presidente do STF em 2008, requereu melhor análise sobre o assunto⁹.

Neste sentido, a controvérsia no STF sobre a prisão civil do infiel depositário, citada pelos ministros Ilmar Galvão e Gilmar Mendes, corresponde, de um lado, à questão de saber se, na alienação fiduciária em garantia, há, ou não, embutido um contrato de depósito ou, em segundo plano, se o Pacto de São José da Costa Rica teve, ou não, o condão de revogar o DL nº 911/69, podendo-se acrescentar o argumento de que uma norma infraconstitucional não pode afastar a exceção da prisão civil previstana Constituição¹⁰.

No entanto, cabe ressaltar que tal controvérsia do STF apresenta jurisprudência que confirma a legitimidade da prisão em casos anteriores. Ela considera os tratados internacionais como lei ordinária, a qual não possibilita modificações de direitos e garantias consagrados na Constituição¹¹. Diante disso, é notório que a discussão aborda valor hierárquico normativo. Os direitos humanos, no entanto, proíbem qualquer espécie de prisão civil decorrente do descumprimento de obrigações contratuais, excepcionando apenas o caso do alimentante inadimplente¹².

Sendo assim, os ministros do Plenário do STF apresentaram o valor constitucional dos Tratados Internacionais. Deste modo, o ministro Ilmar Galvão enfatizou, em seu voto, os direitos fundamentais; isto é, os direitos humanos positivados¹³. Ele invocou, portanto, o princípio da dignidade humana, que é empregada para designar pretensões de respeito à pessoa humana, inseridos em tratados e em outros documentos de direitos humanos. Ainda assim, invocou também o artigo 4º, inciso II, da Constituição, que demonstra a prevalência dos direitos humanos, alegando, então, que os tratados internacionais, os quais o Brasil é signatário, devem ter status constitucional. Além disso, também foram citados os direitos e garantias expressos pela Constituição de 1988, no parágrafo 2º do artigo 5º, em que a Constituição incorpora em seu texto os direitos internacionais¹⁴.

Neste relatório, o ministro Gilmar Mendes apresentou quatro correntes principais referentes ao status normativo dos tratados e convenções internacionais dos direitos humanos. A primeira corresponde a uma vertente que os considera com natureza supraconstitucional – supremacia dos tratados na ordem constitucional. A segunda reconhece o caráter constitucional destes¹⁵. A terceira consiste em qualificá-los como leis ordinárias, esta, inclusive, se mantinha firme na jurisprudência do STF¹⁶. 

Por último, o ministro apresenta a supralegalidade, considerada, por ele, a mais consistente interpretação, que admite o caráter supralegal dos tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos, tendo, sobremaneira, lugar especial no ordenamento jurídico, não possuindo, entretanto, o poder de afrontar a supremacia da Constituição¹⁷. Por conseguinte, ele alega que a jurisprudência do STF precisa ser revisada¹⁸. O ministro conclui, portanto, que não há base legal para a aplicação da parte final do artigo 5 º, inciso LXVII, da Constituição; isto é, para a prisão do depositário infiel.

Fica claro, portanto, que os juízes podem escolher uma possibilidade interpretativa dentre várias; além disso, observamos que a interpretação dos tribunais estabelece quais são os direitos e obrigações que, na prática, poderão ser exigidos de cada um. Convém, então, citar Miguel Reale, o qual afirma "se uma regra é, no fundo, a sua interpretação, isto é, aquilo que se diz ser o seu significado, não há como negar à Jurisprudência a categoria de fonte do Direito, visto como ao juiz é dado armar de obrigatoriedade aquilo que declara ser 'de direito' no caso concreto"¹⁹. Desta maneira, ao considerar o potencial criativo do Judiciário e o fato das linhas jurisprudenciais de decisão serem seguidas, podemos, então, incluir a jurisprudência como fonte formal do direito [COSTA, 2001, p.112].

Ao analisarmos o Relatório Exclusivo, torna-se também possível responder a questão inicialmente apresentada. Sendo assim, a jurisprudência não é fonte do direito neste caso, considerada a jurisprudência do STF, uma vez que a Corte seguiu uma linha de julgamento diferente de tal jurisprudência. No entanto, a jurisprudência pode ser considerada fonte do direito, quando observado o potencial criativo do Judiciário; o (RE) 349703 não foi provido, permitindo, assim, a análise deste potencial, haja vista que foi possível observar a diferenciação na forma de julgar o caso sobre a prisão do depositário infiel. Sendo assim, podemos concordar com Sadok Belaid, quando afirma que “o poder de criar regras jurídicas é uma competência implícita de toda função jurisdicional” ²⁰. Portanto, a jurisprudência é uma das “nascentes do rio” – do direito.


Fontes Bibliográficas:

COSTA, Alexandre A. Introdução ao Direito. Porto Alegre: Fabris, 2001.
FERRAZ JR. Tercio S. Introdução ao Estudo do direito: técnica, decisão, dominação. São Paulo: Atlas, 3ª ed., 2001.
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fontes, 3ª ed., 1991.
REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. São Paulo: Saraiva, 2 ª ed., 2002.
BELAID, Sadok. Essai sur le pouvoir créateur et normatif du juge. Paris: Librairie Génerale de Droit et de Jurisprudence, 1974.

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¹FERRAZ JR. Introdução ao estudo do direito, p. 252
²KELSEN, Teoria pura do direito, p. 256
³FERRAZ JR. Introdução ao estudo do direito, p. 252
⁴Disponível em: http://introducaoaodireito.info/wp/?p=527
⁵(RE) 349703: Voto Vista – Gilmar Mendes, p.10
 ⁶Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/vernoticiadetalhe.asp?idconteudo=100258
⁷(RE) 349703: Voto Vista – Gilmar Mendes, p.4
⁸(RE) 349703: Voto Ilmar Galvão, p.11
⁹(RE) 349703: Voto Vista – Gilmar Mendes, p.2
¹⁰(RE) 349703: Voto Vista – Gilmar Mendes, p.1
¹¹(RE) 349703: Voto Ilmar Galvão, p.12
¹²(RE) 349703: Voto Vista – Gilmar Mendes, p.10
¹³(RE) 349703: Voto – Ilmar Galvão, p.3
¹⁴(RE) 349703: Voto – Ilmar Galvão, p.11
¹⁵(RE) 349703: Voto Vista – Gilmar Mendes, p.16
¹⁶(RE) 349703: Voto Vista – Gilmar Mendes, p.22
¹⁷(RE) 349703: Voto Vista – Gilmar Mendes, p.29
¹⁸(RE) 349703: Voto Vista – Gilmar Mendes, p.27
¹⁹REALE, Lições preliminares de direito, p. 128
²⁰BELAID, Ensaio sobre o poder criativo e normativo do juiz, p.271

Nota: Essa postagem foi originalmente postada em 28/05/2017 às 19:36 e atualizada em 30/05/2017 ás 09:36 para fins estéticos e de melhor compreensão do texto. 

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